terça-feira, 15 de janeiro de 2008

" ANCHORING" Steven Holl

A relação da escrita com a arquitectura apenas espelha incerteza quanto à evidência. Antes, é no silêncio sem palavras que, num acaso, surge a melhor possibilidade de encontrarmos a zona de espaço, luz e matéria que se diz arquitectura. Porém, as palavras, ainda que limitadas a esta evidência, constituem uma premissa, pois o trabalho força-se a continuar mesmo quando elas já não o conseguem. As palavras são setas apontadas a direcções precisas e, em conjunto, formam um mapa de intenções arquitectónicas.

Assim sendo, introduzem-se alguns excertos de pensamento que, nos últimos dez anos, têm sido catalizadores dos projectos em seguida apresentados.

ANCHORING. A Arquitectura está limitada à situação. Ao contrário da música, pintura, escultura, cinema e literatura, a sua construção (não-móvel) encontra-se entrelaçada com a experiência de um lugar. Mais que um mero ingrediente na respectiva concepção, o sítio de um edifício é a sua fundação física e metafísica.

A resolução dos aspectos funcionais do sítio e do edifício - perspectivas, ângulos solares, circulação e acesso - é a "física" que procura a "metafísica" da arquitectura. Através dum elo, um estímulo alargado, um edifício é mais do que algo apenas moldado para o sítio.

Edificar transcende as exigências física e funcional pela fusão com um lugar, pela concentração do significado de uma situação. A Arquitectura, mais que intrometer-se numa paisagem, serve para explicá-la.

Iluminar um lugar não é uma reprodução simplista do seu "contexto". Revelar um aspecto dum lugar pode não confirmar a sua "aparência". Ou seja, os habituais modos de ver podem bem ser assim perturbados.

A Arquitectura e o sítio devem criar uma conexão experimental, uma ligação metafísica, uma ligação poética.

Quando uma obra de arquitectura consegue fundir edificação e situação, uma terceira condição emerge. Nesta terceira entidade, unem-se denotação e conotação, isto é, a expressão liga-se à ideia associada ao sítio. O que é sugestivo e implícito constitui-se como duplicado numa intenção.
Um edifício tem um sítio. Desta situação única, emergem as suas intenções. Edifício e sítio têm estado interdependentes desde a origem da Arquitectura. No passado, esta ligação era manifesta sem intenção consciente, quer através do uso de materiais e técnicas locais, quer pela associação da paisagem aos factos da história e mitologia. Hoje, a ligação entre sítio e arquitectura deve ser encontrada de novas maneiras, enquanto parte duma transformação construtiva da vida moderna.

As ideias aperfeiçoadas desde a primeira percepção do sítio, a meditação sobre os pensamentos iniciais ou a reconsideração da topografia existente, podem tornar-se o enquadramento da invenção. Este modo de invenção concentra-se a partir dum espaço relativo, distinto do espaço universal. Está num domínio de limite. Neste sentido, a arquitectura é prolongamento, uma modificação que confirma significados absolutos próprios de um lugar. Mesmo quando um novo trabalho é a inversão de condições herdadas, a ordem respectiva procura incorporar um aspecto determinado, ou iluminar um significado específico, distinto das generalidades do espaço abstracto. Existe um ideal no específico e um absoluto no relativo.

Permanecendo no pátio do Convento de Religiosas em Uxmal, o tempo torna-se transparente e a
função desconhecida. O curso do sol está perfeitamente ordenado com a arquitectura. Os enquadramentos visuais alinhados com as colinas distantes. Descendo pelo recinto de baile, ascendendo à "Casa das Tartarugas" e de novo olhando para o grande pátio, a experiência transcende a beleza arquitectónica. A arquitectura e o sítio estão fenomenologicamente unidos.

No Salk Institute de Louis Kahn (1), há uma hora do dia em que a luz do sol, reflectida no oceano, junta-se ao regato de água que bissecta o pátio central. Oceano e pátio fundem-se no fenómeno que é a luz do sol reflectida sobre água. Arquitectura e natureza reunem-se numa metafísica do lugar.

Ao longo de um vasto e fértil vale no Oregon, uma forma irregular debrua o Mosteiro Beneditino de Mt. Angel. Na aproximação pelo jardim do claustro, no topo do monte, essa forma aparece como um edifício de um só piso, baixo, de consequências modestas. Porém, no interior, desdobra-se numa explosão de espaço aberto, descendente para o exterior, partilhando voluntariamente o panorama ondulante de terra e céu. Aalto (2) completou a orla do plateau monástico, e criou uma serena cascata de espaço para estudo e contemplação. As qualidades da arquitectura fundem-se com as qualidades e significado da respectiva situação.

Os grandes templos de Ise, no Japão, são reconstruídos todos os vinte anos em sítios adjacentes.
Cada templo tem dois distintos. Desde 4 A.C., este acto religioso manifesta um poder misterioso, sobretudo no sítio vazio com os seus caminhos de pedra, pronto a receber o templo adjacente de acordo com o ciclo seguinte de vinte anos. Tempo e sítio estão ainda mais comprometidos no Sakaki - os ornamentos de papel dependurados nos portões e na cerca, substituídos todos os dez dias.

A residência Malaparte de Adalberto Libera (3), em Capri, apresenta-se como um exemplo misterioso de ordem no espaço, luz e tempo. As suas paredes simples unem-se ao rochedo e penhascos, e emergem do Mediterrâneo como uma estranha plataforma que se oferece ao sol. Sem estilo, quase semalçados identificáveis, a residência associa-se ao sítio, saltando sobre o tempo.

IDEIA E FENÓMENOS. A essência de uma obra de arquitectura é a ligação orgânica entre o conceito e aforma. As partes não podem ser subtraídas ou adicionadas sem perturbar as suas, propriedades fundamentais. Um conceito, tanto como explícita declaração racional ou demonstração subjectiva,estabelece uma ordem, um campo de investigação, um princípio limitado.

Dentro dos fenómenos da experiência na construção edificada, a ideia organizadora é um fio subtilque liga as diferentes partes à intenção exacta. No entanto, a experiência com planos semi-transparentesde vidro, definidores de um espaço sob o brilho da luz, apresenta uma experiência sensorial irreduzível aoconceito subjacente. Porém, esta inexpressão não constitui um hiato entre conceito e fenómenos, mas o raio do campo de acção onde se intersectam várias conclusões.

O entrelaçamento de ideia e fenómenos ocorre quando um edifício é realizado. Antes de começar, o esqueleto metafísico do tempo, luz, espaço e matéria da arquitectura mantêm-se desorganizado. Abrem-se formas de composição - linha, plano, volume e proporção - que aguardam ser activadas. Uma ordem ou ideia pode formar-se quando se juntam sítio, cultura e programa. Porém, por enquanto, a ideia é apenas concepção.

A transparência de uma membrana, a opacidade do gesso de uma parede, o reflexo lustroso do vidro opaco e o raio de luz solar enredam-se em relações recíprocas que formam a experiência particular de um lugar. A interacção dos materiais com os sentidos do utilizador providencia o detalhe que nos comove, para além da visão precisa da tactibilidade. Da linearidade, concavidade e transparência até à dureza, elasticidade e humidade, abre-se o domínio háptico.

Uma arquitectura de matéria e tactibilidade deseja uma "poética de revelação" (Martin Heidegger) (4), que requer uma carpintaria inspirada. O detalhe, nesta poética de revelação, manipula a dissonância de camadas íntimas com a consonância da grande escala. A paciência vertical da parede maciça é interrompida por uma mínima jaula solitária de luz, simultaneamente conferindo escala e revelando material e substância.

De modo semelhante, a experiência espacial do paralaxe, ou desvio perspéctico, abre os fenómenos dos campos espaciais, enquanto se move através de espaços sobrepostos definidos por sólidos e concavidades. Dentro do ponto de vista perspéctico, a experiência do espaço oferece a combinação do horizonte, enquanto espaço externo, com o ponto óptico do corpo. As órbitas do olho surgem assim como um tipo de posição arquitectónica assente nos fenómenos da experiência espacial, que deve ser reconciliada com o conceito e respectiva abstracção da espacialidade experimental.

Um número infinito de perspectivas, projectadas a partir dum número infinito de pontos de vista, podem ser consideradas como construtoras do campo espacial fenomenológico duma obra de arquitectura.

Sem luz, o espaço permanece em esquecimento. A sombra e penumbra da luz, as suas diferentes fontes, a sua opacidade, transparência, translucidez e condições de reflexão e refracção, entrelaçam-se para definir ou redefinir o espaço. A luz sujeita o espaço à incerteza, formando uma espécie de parte de ensaio através dos campos da experiência. A constatação do que uma fonte de luz amarela faz a um simples volume liso ou do que um parabolóide de sombra provoca a uma parede nua e branca, descobre um estado psicológico e transcendente dos fenómenos da arquitectura.

Se, dentro duma construção fisica, considerarmos a ordem (a ideia) como a percepção exterior e os fenómenos (a experiência) como a percepção interior, então as percepções interior e exterior estão entrelaçadas. A partir desta posição, a experimentação fenomenofágica é o material para uma forma de reflectir que reune conceito e sensação. O objectivo está unido ao subjactivo. A percepção exterior (do intelecto) e a percepção interior (dos sentidos) estão sintetizadas na ordenação do espaço, luz e material.

O pensamento arquitectónico é trabalhar através da fenomenologia originada pela ideia. Ao "fazer" descobre-se que a ideia é apenas uma semente para crescimento nos fenómenos.

As sensações da experiência tomam-se um tipo de reflexão distinto do fazer a arquitectura. Quer reflectindo sobre a unidade do conceito e sensação, quer sobre o entrelaçamento de ideia e fenómenos, a esperaça é unir intelecto ao sentir e precisão à alma.

PROTO-ELEMENTOS DA ARQUITECTURA (UMA LINGUAGEM ABERTA). O vocabulário aberto da arquitectura moderna pode ser acrescido por qualquer elemento, forma, método ou geometria de composição. Uma situação estabelece limites imediatamente. Um conceito ordenador escolhido e uns materiais também escolhidos iniciam o esforço de revelar a natureza do trabalho. Antes do sítio, mesmo antes da cultura, um vocabulário tangível de elementos de arquitectura mantém-se em aberto. Reside aqui um belo potencial: os proto-elementos da arquitectura.

Proto-elementos: combinações possíveis de linhas, planos e volumes no espaço mantém-se isolados, trans-históricos e trans-culturais. Flutuam em grau zero de forma sem gravidade, mas são percursores da forma arquitectónica concreta. São elementos transculturais e transtemporais, comuns à antiga arquitectura de Kyoto ou Roma. São elementos que constituem preceitos geométricos fundamentais, comuns ao Antigo Egipto e ao Gótico final, ao racionalismo e ao expressionismo do século vinte.

Linhas: caules de plantas, pequenos ramos, fendas na lama, fendas no gelo, veios duma folha, texturas da madeira, linhas nodais, teias de aranha, cabelo, dunas de areia... O espantoso traçado gótico na pedra da Capela do King's College, da Abadia de Westminster, ou da Catedral de Gloucester. A linearidade do aço no Crystal Palace de Paxton (5) ...

Planos: fitas das algas, folhas de palmeira, couves, sedimentos, pedra, orelhas de elefante, lençóis de água, asas, plumas, papiros... A parede planar na arquitectura do Antigo Egipto; o Templo de Luxor. A maravilhosa e lírica sobreposição na Casa Giuliani-Frigerio de Terragni ou na Casa Schröder de Rietveld.

Volumes: búzios, abóboras, melões, troncos de árvore, icebergues, cristais endomórficos, cactos, planetas... As intensidades volumétricas na arquitectura de Roma, os cilindros de pedra, as pirâmides puras de Cestius ou os volumes interiores no Românico de S. Front, em Periguex.

Uma linguagem aberta, uma extensão do corpo arquitectónico é análogo à extensão da composição na música modena. Tal como um estudante de música pode estudar as mais abertas variações e estruturas em composição, também o estudante de arquitectura deve cultivar um apetite pela composição que seja diverso do habitual modo de ver. A combinação de tons numa unidade harmónica ou a dissonância que reflecte outro tipo de consonância têm paralelos na arquitectura. Quando a música não mais depende da adesão a um sistema de valores de modos major e menor, ou a um sistema clássico de tonalidades, o raio da acção musical é aumentado. Do mesmo modo, no estudo da composição arquitectónica, podemos procurar estender este raio de acção, apesar deste permanecer aberto aos inevitáveis limites que o definem em cada circunstância e sítio.

IDEOLOGIA VS. IDEIA. As teorias gerais da arquitectura são constrangidas por um problema central, quer isto dizer, se uma teoria particular é verdadeira, então todas as outras são falsas. O Pluralismo, por outro lado, conduz a uma arquitectura empírica. Uma terceira direcção, tão elástica quanto definitiva, é a adopção de um conceito limitado. O tempo, cultura, circunstâncias programáticas e sítio são factores específicos a partir dos quais uma ideia organizadora pode ser formada. Um conceito específico pode ser desenvolvido como uma ordem precisa, independente das exigências universais de uma ideologia particular.

Uma teoria da arquitectura que conduza a um sistema de pensar e construir edifícios , tem, como base, uma série de ideias fixas que constituem uma ideologia. A ideologia é evidente em cada projecto que, por sua vez, responde à teoria geal. Em contraste, uma arquitectura baseada num conceito limitado começa com dissemelhança e variação. Ilumina a singularidade duma situação específica.

Os princípios de proporção ou deliberação sobre o ritmo e números não são inválidos por se começar a partir de um conceito "limitado". Os princípios abstractos da composição arquitectónica têm uma posição subordinada na ideia geradora. A ordem "do universal para o específico" é invertida para tornar-se do "específico para o universal".

Esta estatégia de inversão pode tornar-se uma ideologia em si mesma. Não é esta a intenção mas, mesmo assim, esta seria uma ideologia sempre em mudança, uma teoria do cisne preto, mutável e imprevisível. Seria uma ideologia e negaria a homogeneidade do já aceite, através da celebração do extraordinário que é paralelo à diversidade da natureza. A ser uma teoria, esta permitiria uma arquitectura com origens estranhas e misteriosas, confiante no significado original e único de cada lugar. Como seu desígnio, a variação, precisão e celebração daquilo que ainda não é conhecido.

"Os aspectos das coisas
que são para nós mais importantes
escondem-se pela sua simplicidade
e familiaridade ".

- L. Wittgenstein (6)

(1) Louis Kahn (1901-1974), arquitecto americano de origem estoniana; consultar BROWNLEE, David; DELONG, David - Louis Kahn: In the Realm of Architecture, Los Angeles/New York, Ed. The Museum of Contemporary Art/ Rizzoli, 1992 (N. T.).

(2) Alvar Aalto (1898-1977), arquitecto finlandês; consultar SCHILDT, Göran - Alvar Aalto, The complete Catalogue of Architecture, Design and Art, London, Ed. Academy, 1994 (N.T.).

(3) Adalberto Libera ( 1903-1963), arquitecto italiano; ver Gruppo 7, a primeira organização oficial do racionalismo italiano nos anos 20; consultar KOSTOF, Spiro - Historia de Ia Arquitectura, Madrid, Ed. Alianza, 1988 (N. T .).

(4) Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão; ler "Construir, Habitar, Pensar", in Conferencias y artículos, Barcelona, Ed. dei Serbal, 1994 (N. T .).

(5) Joseph Paxton (1801-1855), arquitecto inglês; ver pioneiros da "arquitectura do ferro"; consultar KOSTOF , Spiro -op. cito (N. T .).

(6) Ludwig Wittgenstein ( 1889-1951 ). filósofo austríaco (N.T.).
Tradução livre do texto "Anchoring",in HOLL, Steven - Anchoring, New York, Ed. Princeton Architectural Press, 1989/1991 João Belo Rodeia, 1997

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