terça-feira, 29 de janeiro de 2008

ARTES DO ESPAÇO: ARQUITECTURA/CENOGRAFIA

Pontes entre arquitectura e arte depois do século XX são numerosas, o mundo altera-se rapidamente, e no domínio das artes nenhuma disciplina guarda um sentimento autónomo. Mesmo a arquitectura, arte tradicionalmente isolada, não escapa a este fenómeno. Cada vez mais ela é palco das novas culturas visuais e tecnologias contemporâneas.
As experiências artísticas da década de sessenta alteraram a forma do observador olhar e percepcionar a obra de arte. O espectador deixou de estar perante o objecto artístico e passou a estar dentro do próprio objecto. Este princípio alterou em muito a concepção espacial que passou a ser desde então um grande centro de interesse de qualquer prática artística. No campo das artes plásticas os artistas começaram a extravasar as paredes brancas das galerias e começaram a apresentar os Happenings, como novo conceito artístico onde aproximavam, artistas e público, arte e realidade. No campo das artes cénicas estas experiências vieram a centrar-se essencialmente na relação entre espectador-actor, e espectador-espaço cénico, foi assim que pela primeira vez apareceu o desejo de escapar à sala de teatro tradicional com a sua caixa cénica e o “palco à italiana”. Com todos estes novos interesses, surgiram nas diferentes artes novas perspectivas e teorias espaciais, explorando tanto o seu lado construtivo como o seu lado metafórico e utópico.
Hoje em dia, artistas plásticos como Richard Serra, Eduardo Chillida, Vito Acconci, Gordon Matta-Clark, Bruce Nauman, Rachel Whiteread, James Casebre, Wolfgang Laib entre outros, trabalham e questionam temas que sempre entendemos como temas arquitectónicos (concepção espacial, território, espaço público e espaço privado). Os limites entre arte e arquitectura tornaram-se assim cada vez mais ténues, possibilitando cada vez mais o cruzamento de técnicas e conceitos entre disciplinas artísticas. Neste campo a cenografia tem vindo a contribuir de uma forma muito clara.
Ao longo do século XX, a cenografia foi deixando de ter um carácter mimético, e em vez de imitar um lugar do mundo como forma de caracterizar a acção teatral, passou ela própria a construir um lugar para as suas personagens e até mesmo para os seus espectadores. Começou então a desenvolver com maior intensidade temas tradicionalmente arquitectónicos ligados à tridimensionalidade do espaço como luz, sombra, cor, escala e perspectiva. Com estes novos temas, a cenografia afastou-se da pintura (arte com que se relacionava tradicionalmente) e aproximou-se da arquitectura.
Adolphe Appia foi um dos teóricos teatrais mais importantes da renovação das teorias de encenação europeias do início do século XX. O grande fundamento de todo o seu trabalho foi sempre tentar trazer para o teatro e para a dança, a continuidade e unidade entre a presença corporal e o espaço cénico, com forte influencia do conceito Wagneriano de obra de arte total, Appia defende a sensibilização do homem no espaço arquitectónico, e cria o novo conceito de obra de arte viva. Desde os anos vinte que as suas teorias apontavam para que a cenografia trabalhasse essencialmente com a manipulação do espaço. Para Appia o espaço cenográfico teria de ser organizado segundo aquilo que ele chamava os quatro elementos expressivos: o actor – a figura humana, a implantação, a iluminação e a cor. Para a criação de um cenário estes quatro elementos independentes teriam de ser subordinados uns aos outros e conjugados com a música e os seus ritmos constituindo assim uma paisagem cénica forte, coesa e abstracta.
Hoje em dia podemos rever algumas destas teorias espaciais no trabalho de alguns artistas que embora afectos a uma área artística, produzem obras em campos transdisciplinares. O trabalho de Sasha Waltz, no campo da coreografia, reflecte bem como a arte pode ser feita de corpo, espaço e movimento. Com os seus trabalhos mais uma vez se coloca a questão do lugar e do estatuto da arte enquanto objecto ou acto. E por consequência a questão da essência da arquitectura. Talvez por ter tido uma relação muito próxima com arquitectura (filha de arquitectos) as obras de Sasha Waltz demonstram um grande cuidado com uma visão poética do espaço. Os ambientes criados para 99 Dialogues, NoBody ou Körper sempre tratados como mais uma personagem interveniente no espectáculo são espacialmente muito expressivos e testemunham a sua permeabilidade à arquitectura.
Encenado pela primeira vez na inauguração da extensão do Museu dos Judeus em Berlim, 99 Dialogues é um espectáculo que pretendia dialogar com espaço arquitectónico envolvente, projectado por Daniel Libeskind. Sasha Waltz distribuiu os seus bailarinos em pequenos grupos pelo museu condicionando a passagem do público. Os seus corpos faziam o contrapondo com as paredes inclinadas do museu e ajudavam a alertar o público para o drama do Holocausto. Em körper (4), um único plano vertical, preto serve de cenário. No centro deste plano uma abertura, feita à semelhança de uma janela, vai alterando a sua expressão conforme a luz. Esta janela umas vezes põe em evidencia a acção, e nela deslizam silenciosamente os corpos dos bailarinos, outras vezes anula-se perante o fundo negro do espaço envolvente. Na relação entre acção e objecto arquitectónico, este foi um primeiro passo para o espectáculo criado para ser representado no Festival d’Avignon em 2002 no Pátio principal do Palais des Papes. Sobre uma fachada repleta de história Sasha Waltz faz deslizar um cubo branco feito de tela. Um objecto neutro dentro de um “vazio” carregado de história. O edifício existente é vertical e repleto de janelas, Sasha Waltz ocupa o espaço na sua totalidade. Ela investe nas janelas góticas com um jogo de luzes, e aplica-lhes imagens radiográficas dos seus bailarinos, transforma-os em vitrais contemporâneos. Uma maneira plástica de revelar o corpo com a luz e com a cor. Enquanto os bailarinos se movem em grupo, um enorme balão flutua sobre as suas cabeças, este balão equilibra o vazio angustiante provocado pela verticalidade do pátio. Momentos depois o balão solta-se das suas amarras, flutua por uns instantes sobre o pátio e pousa delicadamente sobre a cena, envolvendo-a. Com este espectáculo Sasha Waltz capta o espírito do espaço e revela-lo ao seu público.
Nas representações de Sasha Waltz é sempre possível apreender uma forte relação entre a acção e o espaço cénico seja ele um lugar com grandes memórias arquitectónicas ou um espaço mesmo banal: em twenty eight (1993) o cenário é uma cozinha, em Tears break fast (1994) o cenário é uma casa de banho e um bar, em Allee der Kosmonauten (1996) o cenário é constituído por um prédio com nove andares, em zweiland (1997) sobre o palco existe a representação do muro de Berlim. Em todos os espectáculos, e sem cessar existe uma grande vontade de Sasha Waltz constituir uma leitura critica para o espaço cénico apresentado através das acções que propõe.
Como vimos anteriormente, tal como grande parte das artes contemporâneas a cenografia, trabalha essencialmente com a manipulação do espaço, mas à semelhança da arquitectura a cenografia só se completa no momento em que os seus espaços se preenchem de acções, histórias, movimentos e personagens. Embora grande parte das artes, hoje em dia se interesse por questões espaciais, a cenografia é a única arte que tal como a arquitectura configura espaços tridimensionais e os prepara para diferentes acções humanas ainda que sejam simulações. O espaço teatral contemporâneo questiona de diversas maneiras os códigos perceptivos utilizados até então, mostra a relatividade espacial e aproxima-se da arquitectura.
Os espectáculos de Sasha Waltz como de outros artistas contemporâneos apresentam-se ao espectador com um forte carácter transdisciplinar questão que pode possibilitar o diálogo entre diferentes áreas artísticas. O meio da arte pode permitir encontrar espaços de reflexão e de produção difíceis de explorar na arquitectura. A sobreposição de diferentes artes, linguagens ideias e técnicas, sempre encarada como uma partilha e não como uma sobreposição de teorias pode constituir uma mais valia para a produção arquitectónica.
Gabriela Gonçalves, Arquitecta Docente de Projecto na Universidade Lusíada Doutoranda da área de Proyectos Arquitectónicos da Universidade de Valladolid
Tropecei neste texto e pensei que seria importante que todos o lessemos, afinal de contas nos somos a geraçao da imagem, do cenário...
Um bem haja caros colegas...
Ana do Vale

1 comentário:

Unknown disse...

Obrigado Patrícia, o texto está muito interessante.

Já agora, gostei do teu comentário acerca da "geração da imagem".
A minha, chamaram-na "geração rasca", ironicamente a geração que nos criticou, foi a mesma que nos educou.

Obrigado de novo pelo texto, bom trabalho :)

Paulo G.