sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O LUGAR como armadilha

O LUGAR como Armadilha Este texto é o resultado de uma reflexão que se fez mais especulativa do que crítica, à volta do tema LUGAR e sua relativa exaustão, a partir da reflexão e procura de representações simbólicas de Macau e do seu estado de contemporaneidade e de ultra-urbanização. Interessa interpretar o tema LUGAR como um meta-conceito: Através da definição da sua condição conceptual no extremo. Todo e qualquer lugar é carregadamente caracterizado pela sua objectividade inalienável, por tudo aquilo que o eleva de espaço a Lugar. Para atravessar esta fronteira, escolhemos uma única característica definidora de Lugar, simultaneamente genérica e objectiva: A ideia de que, quando pertencemos a um Lugar, estamos presos nele (a ele), qualquer que ele seja. Que há um sistema de fascínios que nos detém (no) ao lugar. Lugar enquanto Armadilha: a nossa experiência quotidiana, visual e sensorial funciona como um contínuo estímulo de preservação comportamental. Todos os conceitos de estabilidade e preservação estão associados à noção de lugar (território). O verdadeiro acto de viajar é um abismo, e por tal, pode-nos libertar de nós próprios: será que realmente viajamos, quando viajamos? Ou apenas reconhecemos sistemas de imagens familiares à nossa imaginação ARMADILHAda, como nas interrogações de Marcel Proust: quantas vezes temos de viajar até aprendermos a viajar? Apenas temos uma compreensão conceptual de um Lugar, quando nos conseguimos afastar (libertar) do dito Lugar: quando perdemos a saudade de o ausentar, e o vício de o desejar. Quando o lugar se emancipa de nós ou vice-versa. A Armadilha no Lugar: nem sempre a armadilha está escondida. A ideia de Lugar dá-nos por um lado a noção de identidade e orgulho de pertença, o lugar é essa ferida de onde vimos – cette blessure d où je viens – como uma cicatriz da noite; e no seu próprio reverso, (A ideia de Lugar) constrói em nós, como uma ARMADILHA, uma colagem do indivíduo ao seu comportamento cultural, às permanências, idiossincrasias, lugares comuns. Desde a opinião ao vestir, o que nos retém, nos define e identifica, passa por esta amarração ao lugar. Quando a forma melhor e mais barata de se sair de um lugar é sair virtualmente pelo ecrã de televisão: a libertação visual bidimensional é um vício de fuga sem fugir (para além dos seus outros 888 significados), é uma ficção de liberdade… A nossa relação fenomenológica com o real está condicionada pela impossibilidade de nos distanciarmos sistematicamente do nosso mundo, sem nos alienarmos dele. Também por isso, a capacidade de relativizar e desmultiplicar a noção do nosso LUGAR, não nos leva à esquizofrenia, mas a um estado de maior libertação. A cidade pode ser entendida como uma colecção de sítios maravilhosos que provocam o desejo e as fantasias mais inconfessadas das pessoas. Esta capacidade de encantar desencadeia o magnetismo que nos fixa aos lugares. A Armadilha torna o perigo atraente: a cidade é essa armadilha irrecusável.


Rui Leão, arquitecto
Caros Colegas penso que este artigo retrata qualquer coisa de util...
Um bem haja a todos...
Ana Do Vale

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

ARQUITECTURA: ESPAÇO E RITUAL

Arquitectura: Espaço e Ritual (1) Nos discursos que construímos a propósito dos objectos arquitectónicos e do espaço procuramos que, através da verbalização, o objecto dos nossos estudos seja tornado inteligível, racionalizável. Para melhor compreender os fenómenos que estudamos, empreendemos a sua observação, análise e descrição. Com frequência, recorremos a analogias que têm origem em disciplinas diferentes da nossa, sobretudo no universo da mecânica, da biologia, da linguística...(2) E, muitas vezes também, não nos damos conta do modo como essas analogias condicionam a nossa capacidade de observação. Construindo uma aparência de verosimilhança, elas podem ocultar a verdadeira natureza dos fenómenos e constituir-se, afinal, como verdadeiros obstáculos ao entendimento. Bem pelo contrário, alguns autores que se têm dedicado ao estudo do universo das relações sociais vêm elaborando quadros conceptuais nos quais o espaço e ao seu uso adquirem uma posição central. A vida dos sujeitos individuais e dos grupos humanos – das sociedades, em suma – na sua existência material, no espaço e no tempo, é aí abordada através do recurso a metáforas com uma clara base espacial(3). Parece-nos razoável que o uso dessas metáforas espaciais possa beneficiar também o estudo do espaço do ponto de vista do arquitecto, tanto enquanto suporte conceptual em actividades de análise, como enquanto base para as operações de síntese (ou seja, de projecto). Trata-se de metáforas que nos permitem ultrapassar a dimensão estritamente visual do espaço e da arquitectura, o primado da bidimensionalidade e da imagem que tanto têm confinado a prática e o debate arquitectónico contemporâneos. Que nos levam a procurar compreender o espaço a partir das práticas que nele são desenvolvidas pelos homens, ao longo do tempo, a partir das interacções que aí tomam lugar, através da definição de fronteiras, de limites e de passagens; dos jogos de poder que aí são negociados; pela comunicação que através dele é mediada, na representação e no improviso, na convenção e na subversão. A aprendizagem da observação dessas “práticas do espaço” – incluindo nesta noção tanto o uso do espaço como a sua concepção – conduz-nos à busca de um entendimento das relações entre o espaço, a cultura e a história; entre a conservação e a inovação; entre ensino e aprendizagem, produção e reprodução culturais; entre os espaços e a identidade dos grupos que os habitam. Ritos de passagem Uma das obras que mais terá contribuído para uma leitura espacial da sociedade é Les Rites de Passage, publicada em 1909 pelo antropólogo francês Arnold van Gennep (1873-1957). O longo subtítulo do livro sintetizava todo um programa de trabalho: \"estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adopção, da gravidez e do parto, do nascimento, da infância, da puberdade, da iniciação, da ordenação, da coroação, do noivado e do casamento, dos funerais, das estações”. Pela primeira vez, o rito era tomado como objecto de estudo autónomo. Através de exemplos recolhidos em civilizações muito diversas, Van Gennep colocava em evidência a similaridade profunda das manifestações que se referem ao ciclo de vida do indivíduo, ao ciclo familiar, à passagem do tempo, aos ciclos das estações, dos dias, das tarefas da produção. Segundo Van Gennep, em qualquer tipo de sociedade, a vida individual “consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra”(4). Os ‘ritos de passagem’ configuram rupturas com o quotidiano, \'etapas intermediárias\' que assinalam e conferem sentido às transições entre estágios sucessivos da vida dos indivíduos. Os ritos associam-se a um \'antes\' e um \'depois\', constituem uma expressão da dinâmica social; assumem a condição de \'passagem\' de uma situação culturalmente determinada e reconhecida pela sociedade na qual estão integrados a uma outra situação igualmente determinada(5). Essas cerimónias operam através da comparação, do contraste e da contradição para distinguir e separar categorias que têm uma importância vital para a manutenção do grupo. Um rito de passagem é um acontecimento colectivo, que envolve coacção, e que permite avaliar o grau de integração na comunidade(6). Para os indivíduos, como para os grupos, diz Van Gennep, \"viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente\"(7). Os ritos transformam essa ideia de renovação em drama, em encenação teatral; implicam um momento de morte, concebida como paralização da vida, e um renascimento subsequente(8). Os ritos têm uma estrutura sequencial idêntica à estrutura dramática clássica – um início, um meio ou clímax e um final – tal como Aristóteles a enunciou na Poética(9). Ou seja, os ritos assentam num esquema de progressão no tempo que lhes confere o carácter de acontecimentos eminentemente históricos; articulam-se com aquilo que os precede e com aquilo que se pressupõe, ou que se deseja, venha a suceder-lhes. Espaço e corpo. Passagens Van Gennep identificou as três fases que compõem a sequência típica dos ritos de passagem pelos termos ‘separação’, ‘margem’ e ‘agregação’. Em geral, ao longo de um processo ritual, o sujeito é separado do curso normal da vida e do grupo ao qual pertence; leva então uma existência marginal e fica sujeito a inúmeras regras, podendo ser submetido a ensinamentos e a provas físicas ou morais; finalmente, uma vez consumada a passagem, é reintegrado na vida normal da comunidade, assumindo o seu novo estatuto. Na grande maioria dos exemplos que recolheu, Van Gennep constatou que as passagens através das diversas situações sociais não são apenas metafóricas. Essas passagens envolvem transformações na ordem do corpo, são combinadas com passagens materiais e identificadas com elas: a entrada num povoado ou num edifício, a passagem de um quarto para ou outro; um salto ou a transposição de um limiar ou um pórtico, um percurso através das ruas ou das praças(10). Aquilo que se pode significar será a transposição dos \"limiares do verão ou do inverno, da estação ou do ano, do mês ou da noite, limiar do nascimento, da adolescência ou da idade madura, limiar da velhice, limiar da morte\"(11). A partir da equivalência entre as passagens no tempo e as passagens no espaço, Van Gennep conceptualiza o mundo social como uma deslocação no tempo e no espaço. A sociedade seria como uma unidade espacial com uma série de divisões no seu interior. Cada indivíduo estaria \"classificado em diversos compartimentos, sincrónica ou sucessivamente, e, para passar de um ao outro a fim de poder reunir-se com indivíduos classificados em outros compartimentos\" seria obrigado a submeter-se a ritos de passagem, ao longo da sua vida e da sua trajectória social(12). Para explicitar esta referência às transições espaciais, Van Gennep designou igualmente as três fases do rito pelos termos ‘preliminar’, ‘liminar’ e ‘pós-liminar’, decorrentes de limen – o vocábulo latino para soleira ou limiar. Deste modo, confere uma posição central à condição de ‘liminaridade’ e remete para posições periféricas aquilo que a antecede e que lhe sucede (pré- e pós-). O rito define limiares, ou limites, no território, em relação aos quais se estabelece a discriminação entre espaços profanos e espaços sagrados. Ficava assim sublinhada a importância fulcral da situação liminar ou de margem – simultaneamente ideal e material definida como uma zona neutra, “flutuando entre dois mundos”(13). O fenómeno da \'margem\' corresponderá à necessidade de existência de um \'ponto morto\' separando dois movimentos de sentido contrário; da necessidade fundamental de regeneração das actividades biológicas ou sociais, em intervalos mais ou menos aproximados(14). Como notou Van Gennep, é frequente nas práticas rituais existir uma relação de identidade entre as passagens físicas, materiais, e as passagens ideais ou metafóricas. Desse modo, o ritual torna evidente a importância metafísica que os indivíduos e os grupos investem na sua prática efectiva do espaço. Ao mesmo tempo, o ritual transforma essa prática corporal, sensível, localizada, numa experiência partilhada, memorizável, reprodutível e reprodutora. São numerosas as referências que recolheu sobre as formalidades de ordem mágico-religiosa associadas às fronteiras físicas(15). Enuncia os sinais físicos através dos quais se exprime a apropriação dos espaços e as interdições que lhe são associadas: os limites a transpor – os limiares podem ser definidos por marcos naturais (rochedos, árvores, um rio, um lago...) ou por construções humanas especialmente implantadas com essa intenção (postes, pórticos, pedras verticalizadas, muros, estátuas...). Nas culturas tradicionais, as vias de comunicação naturais têm frequentemente o valor de obstáculos a transpor: a passagem dos desfiladeiros ou a travessia de rios é, muitas vezes, acompanhada com ritos de passagem(16). De modo semelhante, “o embarque ou o desembarque, o acto de subir para uma carruagem ou um palanquim, de montar a cavalo para viajar, etc., acompanham-se muitas vezes de ritos de separação na partida e de ritos de agregação na volta”(17). Os exemplos de Van Gennep reportam-se a todas as escalas do espaço, ao país, a um território, uma cidade ou uma aldeia, um quarteirão, um templo ou uma casa. A margem – a zona neutra definidora do limite, isto é, a zona liminar – corresponderá então à portagem, à poterna das muralhas, à porta dos muros do bairro, à porta da casa, ou apenas a uma pedra, uma viga, uma soleira. Mas pode também adquirir a definição de um pronau, um nártex ou um vestíbulo. A porta, em especial, “é o limite entre o mundo estrangeiro e o mundo doméstico, quando se trata de uma habitação comum, entre o mundo profano e o mundo sagrado, no caso de um templo”(18). O carácter sagrado da porta pode ser reconhecido ao conjunto da moldura ou, de modo isolado, à soleira (limiar), aos lintéis ou à arquitrave. Por vezes, “o valor sagrado da soleira encontra-se em todas as soleiras da casa”(19) e podem identificar-se ritos de soleira que cobrem as diversas modalidades dos ritos de passagem: ritos de entrada, de espera e de saída(20). Rituais profanos. Rituais contemporâneos A análise do rito tem vindo, entretanto, a alargar-se às suas formas mais profanas e menos colectivas(21). Admite-se hoje que sempre existiram ritos profanos, sob a forma de ritos da alimentação, do trabalho, do desporto, da guerra, da justiça ou da escola(22). Tal como sempre sucedeu, nos nossos dias o rito marca \"rupturas e descontinuidades, momentos críticos (passagem) tanto nos tempos individuais como nos sociais; (...) ordena a desordem, dá sentido ao acidental e ao incompreensível, dá aos actores sociais meios para dominar o mal, o tempo e as relações sociais\"(23). Não existe acordo quanto a uma definição canónica e consensual do rito. Contudo, para aqueles que se ocupam do projecto dos espaços e dos objectos que servem de suporte à vida quotidiana (urbanistas, arquitectos, paisagistas, designers...) parece especialmente significativa a constatação de que o rito é caracterizado universalmente por \"uma configuração espacio-temporal específica, pelo recurso a uma série de objectos, por sistemas de comportamento e de linguagem específicos e por sinais emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo\"(24). A essência da dimensão espacial, e sobretudo corporal, observada nos rituais foi sublinhada por David Parkin(25). De acordo com este autor, \"o ritual é fundamentalmente feito de acção física\" e composto por \"movimentos corporais em direcção ou posicionando-se em relação a outros movimentos e posições corporais\"(26). Todos os rituais são inscritos no espaço, ordenados em fases e sequências; implicam movimento, direccionalidade (eixos, pontos cardeais, zonas concêntricas e outras expressões de orientação espacial) e posicionamento; implicam um percurso de passagem empreendido e/ ou marcado pelos participantes, dispostos no espaço uns em relação aos outros. O ritual adquire a \"capacidade de criar e agir\"(27), através de ideias de espaço (passagem, movimento, mudança, percurso, eixo, centro, subir e descer); a orientação espacial e a posição, os movimentos entre pontos e lugares são os meios que constituem o próprio ritual (e só através deles os rituais podem ser descritos). Fundação e apropriação Aceitemos pois que os ritos têm a sua expressão essencial através das práticas corporais do espaço. Reciprocamente, toda a prática corporal do espaço implica dimensões que ultrapassam a sua mera descrição física: integra um sistema de classificação e de simbolização no qual as práticas rituais são parte fundamental. Sabemos, desde que Émile Durkheim (1858-1917) publicou Les Formes Élèmentaires de la Vie Religieuse, (1912), que o espaço do homem não é uma entidade natural e abstracta, mas sim culturalmente construída. O espaço existe apenas em potência; é a acção humana que o concretiza. Para pensar o espaço, para o representar, \"para poder dispor espacialmente as coisas, é preciso poder situá-las diferentemente\". Para que tal aconteça, diz Durkheim, o espaço é dividido, são-lhe impostas diferenças que ele, em si próprio, não possui: direita e esquerda, em cima e em baixo, à frente e atrás, norte e sul. Essas divisões são construção humana, decorrem da atribuição colectiva de \"valores afectivos diferentes\" a cada uma das regiões do espaço(28). Distingue-se o espaço concebendo um modo de classificação, determinando relações de coordenação ou de subordinação, níveis de dependência, uma ordem hierárquica(29). Assim, cada apropriação de um território – mesmo quando não assuma uma forma explicitamente ritualizada repete o acto fundador original. Impõe uma ordem anteriormente inexistente, transforma o caos primordial em cosmos; define um \'centro\', estabelece \'fronteiras\' (físicas ou simbólicas). As classes culturalmente reconhecidas podem então ser separadas, cada uma confinada ao lugar onde é admitida: interior e exterior; público e privado, sagrado e profano, nosso e deles... O mundo natural (exterior e hostil) é transformado em mundo cultural (assimilado, consumido); cria-se um teatro de acção, o campo necessário a qualquer actividade(30). A antropóloga Mary Douglas ilustra este processo – a sua universalidade e permanência – com o exemplo das tarefas domésticas de arrumação, através das quais \"separamos, traçamos fronteiras, tornamos visíveis decisões que tomámos sobre o que deve ser o nosso lar e que achamos por bem criar a partir da dimensão material da casa\"(31). Comportamento ritual e projecto arquitectónico Foi já defendido que existe uma relação estreita entre a organização sociopolítica e cultural de um grupo e a segmentação que este estabelece no seu espaço de vida(32). Essa segmentação materializa-se na compartimentação da arquitectura, na separação de objectos, na definição de \'cenários de interacção\'(33) especializados e distintos entre si, destinados a situações e actividades específicas. Deste modo se entende que, nas sociedades urbanas e industrializadas da contemporaneidade, a fragmentação da vida social em campos diversos (religioso, escolar, profissional, desportivo, cívico) implica uma disjunção dos espaços e dos tempos destinados ao desempenho dos rituais correspondentes. Os contextos espaciais destinados ao desempenho de rituais em sociedades tradicionais têm sido apontados como exemplares daquilo que pode considerar-se “uma condição mínima para a arquitectura: apenas a suficiente definição espacial para permitir que a coreografia partilhada seja levada a cabo\"(34). Muitas vezes, a materialidade dessa intervenção é tão discreta que passa despercebida a elementos estranhos ao grupo e é tão frágil que necessita ser recriada a cada novo desempenho. O processo assemelha-se ao modo como as crianças transformam a rua num lugar para jogar à macaca ou para uma partida de futebol. Em ambos os casos, existe um gesto arquitectónico fundamental, um \"artifício que declara a presença humana\". É ele que garante a estrutura do acontecimento no tempo, que dá expressão às relações entre os actores e estabelece a ligação entre toda a sequência. Nestes exemplos, verifica-se uma completa harmonia entre o cenário e o conjunto de regras implícitas através das quais ele é usado. Pode falar-se então da existência de um ‘ritual de sustentação’ (sustaining ritual), sob a forma de uma “actividade socialmente reconhecida repetida regularmente que afirma e reafirma o valor e o significado do espaço”(35); uma prática que é, simultaneamente, factor de agregação do grupo, de sustentação de determinado modo de vida, base da definição e do uso do espaço e da arquitectura. Tal como nas culturas tradicionais, também no mundo contemporâneo a necessidade atribuir lugares a determinadas actividades, nos quais estas possam fixar-se e desenvolver-se de modo favorável, surge apenas à medida que essas actividades ganham definição e estabilidade e se dotam de uma pauta colectiva. Chamado a intervir, o arquitecto procurará então encontrar a \'justa acomodação\' dessas necessidades, estabelecendo um vínculo profundo entre a arquitectura – a “operação através da qual a actividade assume uma forma estável” – e as regras sociais que têm uma das suas principais formas de expressão nos comportamentos rituais. Sempre que um grupo dá expressão ritual a determinada actividade, estará já implicitamente a definir a arquitectura que lhe corresponde. De modo recíproco, \"toda a verdadeira arquitectura gera uma ritualização dos nossos actos”(36). Deste ponto de vista, o rito é \"o ponto de união ou de tangência entre o mundo da forma e o da actividade: o único ponto através do qual pode traçar-se a arquitectura\". Por conseguinte, a arquitectura será apenas “um procedimento capaz de dar forma à actividade, impondo-lhe umas regras que, apesar de serem próprias da forma, encontram na actividade uma correspondência analógica”(37).Dito de outro modo, a arquitectura será \"pouco mais que aquilo que torna possível o rito, um simples cenário para o acontecer humano”(38). Smithsons e Van Eyck: do doorstep a la plus grande réalité du seuil Nos debates que moldaram a cultura arquitectónica contemporânea do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o tema do \'limiar\' foi introduzido por iniciativa dos ingleses Alison Smithson (n. 1927) e Peter Smithson (n. 1923), na nona edição dos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM 9; Aix-en Provence), em 1953. Os Smithson apresentaram as suas ideias sobre o \'doorstep\' soleira, referindo-se à extensão da casa sobre o espaço público imediato, à transição entre o interior doméstico e a rua. Em boa medida, as suas observações partiam das investigações sobre os padrões de associação quotidiana entre a população operária de um bairro do East End de Londres então empreendidas pelo fotógrafo Nigel Henderson e pela socióloga Judith Stephen. Adoptavam o ponto de vista das crianças, para quem a aprendizagem do domínio da soleira representa o começo da extensão do espaço familiar à esfera social(39). E concluíam que a rua era mais do que um simples meio de acesso, era como que um palco da expressão social no qual eram gerados a identidade, os laços sociais, a sensação de segurança e de bem-estar(40). Logo depois, o holandês Aldo Van Eyck (1918-1999) tomou o conceito de soleira e alargou-lhe o sentido. Alimentando a sua reflexão com contributos de fontes muito diversas (das vanguardas artísticas do início do século XX à filosofia, das ciências exactas à antropologia), Van Eyck ia recuperar o sentido ritualizante do espaço e elevar a liminaridade a princípio fundamental de toda uma construção teórica e poética da arquitectura e do lugar(41). Para Van Eyck, a ideia de limiar era algo que tinha capacidade para reestabelecer a ligação entre todas as polaridades da realidade, entre todos os aspectos ambivalentes e complementares que o arbitrário cultural transforma em antinomias. No CIAM 10 (Dubrovnik, 1956), lançou o mote \"la plus grande réalité du seuil\" – o limiar como símbolo da essência da arquitectura. In-between, lugares intermédios Tomando o sentido literal do limiar, Van Eyck sublinhava o carácter humano, relacional, da porta, lugar de \"um gesto humano maravilhoso: a entrada e a saída conscientes\". A porta, afirmava, \"enquadra-nos à chegada e à partida, é uma experiência vital não apenas para aqueles que a transpõem mas também para aqueles que encontramos ou deixamos atrás dela. A porta é um lugar feito para uma ocasião. A porta é o lugar feito para um acto que é repetido milhões de vezes numa vida, entre a primeira entrada e a última saída\"(42). Defendia que a porta não deve ser uma fronteira abrupta, uma simples superfície dividindo dois domínios. Nem, tão-pouco um contínuo espacial, onde a articulação entre uma realidade e a outra se dilui; onde o interior se funde no exterior, gradualmente, de modo insensível. A porta, dizia, deve ser um lugar articulado que pertence tanto ao interior como ao exterior, um lugar onde os aspectos significantes de ambos os lados estão simultaneamente presentes. A porta devia expandir-se e adoptar uma forma capaz de evocar as boas-vindas, de constituir um convite à pausa, à permanência. Todos os limiares deviam constituir lugares intermédios articulados –in-betweens–, nos quais as polaridades espaciais pudessem encontrar-se e ser reconciliadas num composto binário fundamental. Esses \"lugares intermédios claramente definidos\" seriam responsáveis por articular as transições, de modo a induzir \"o conhecimento simultâneo daquilo que é significativo do outro lado\". Com esta proposta, Van Eyck colocava-se em clara oposição a um valor matricial de grande parte da produção arquitectónica contemporânea: a procura de continuidade espacial, manifestada através da “tendência para eliminar todas as articulações entre espaços, isto é, entre o exterior e o interior, entre um espaço e o outro\"(43). Bem pelo contrário, segundo Van Eyck, os intermédios/ in-betweens deviam ligar as polaridades deixando lugar para o imponderável, para \"as múltiplas actividades, desejos, necessidades e fraquezas do homem\"(44). Estes intermédios deviam ser concretizados em todos os níveis da realidade construída, tanto na forma como na estrutura, e criar aquilo a que Van Eyck chama uma \'paisagem da reciprocidade\', um ambiente construído no qual todas as coisas são simultaneamente pequenas e grandes, parte e todo, casa e cidade, simples e complexas, unitárias e distintas(45). Como \'princípio básico\' para o projecto, tanto em arquitectura como em urbanismo, Van Eyck recomendava que se o arquitecto reestabelecesse sempre o equilíbrio de cada conceito através da introdução do pólo que se opõe (como interior X exterior, pequeno X grande, parte X todo, simples X complexo, unidade X diversidade, aberto X fechado, muito X pouco, movimento X repouso, perto X longe, ordem X caos, claro X labiríntico, massa X espaço, passado X futuro, orgânico X inorgânico, claro X escuro, individual X colectivo, arquitectura X urbanismo, casa X cidade, antigo X novo). Desse modo, criando um \'fenómeno dual\' ou \'fenómeno gémeo\', os dois pólos em tensão seriam reconciliados. \"O melhor modo de proporcionar uma realidade básica é proporcionando a realidade gémea da qual ela foi arbitrariamente dividida\"(46). Para Van Eyck, esta noção de \'fenómeno gémeo\' não correspondia a uma \'síntese dos opostos\' na tradição hegeliana, na qual o conflito entre uma tese e uma antítese se resolve através da geração de uma categoria superior. Num fenómeno gémeo, os pólos opostos não se anulam; confrontam-se numa relação não-hierárquica, mantém-se reconhecíveis como opostos e enriquecem-se mutuamente; o seu sentido será reforçado quando são observados a partir do outro extremo(47). \"Estou interessado na ambivalência, não na equivalência. Não estou interessado na unidade dos opostos\"(48), dizia. As imagens que usava para ilustrar esta ideia são esclarecedoras. Trata-se, afirmava, de dar forma a uma ligação paradoxal, de gerar \"um lugar onde os dois pólos estão simultaneamente presentes e onde as suas tendências opostas se activam mutuamente, como se fossem cores complementares\". Ou, tomando uma imagem a Heraclito, colocar as forças em oposição na tensão certa, como aquela que, numa lira, junta o arco e a corda e faz deles uma unidade harmoniosa(49). Desta forma, Van Eyck reclamava as tensões, as oposições, as fronteiras, reforçadas pelo confronto, harmonizadas e integradas, em complementaridade. Contra as hierarquias fixas e as fronteiras rígidas, contra todos os dualismos, contra a neutralidade e a continuidade sem articulação, contra a diluição das identidades, reafirmava o sentido ritual das práticas do espaço. Na visão generosa e estimulante de Aldo Van Eyck, todos os espaços, a todo o momento, devem estar destinados à passagem e ao encontro. Devem ser espaços intermédios e intermediários, articulados e articuladores. Estarão abertos, disponíveis para receber este e aquele, nós e os outros, cada um e o seu oposto. Devem ser isto e aquilo, sempre \'betwixt and between\'.
João Paulo Martins, arquitecto, professor auxiliar da FA UTL
Bom Trabalho caros colegas!
Ana do Vale

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Turismo Infinito | Teatro e cenografia | Exposição















Teatro e Cenografia | Exposição
Coimbra, de 7 a 29 de Fevereiro

A exposição da cenografia da peça "Turismo Infinito" da autoria do Manuel Aires Mateus, com encenação de Ricardo Pais e produção do Teatro Nacional S. João, inicia a 7 de Fevereiro o ciclo "teatro e cenografia" organizado pelo Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV).

Este ciclo tem como objectivo apresentar a cenografia contemporânea enquanto cruzamento de linguagem teatral e expressão arquitectónica.

Datas:
De 7 a 29 de Fevereiro de 2008
De Segunda a Sexta, 10:00h-12:00h, 14:00h-22:00h | Sábados 14:00h-22:00h | Encerrado ao Domingo


Contactos: Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV)
Morada: Praça da República
3000-343 Coimbra
Telef.: 239 855630
| 239 855637
e-mail: teatro@tagv.uc.pt


Mais Informações: http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=1183

Já sei que até ao dia 15 é impossível... mas depois...
Bom trabalho
Paulo

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Unidade Urbana

Um dos problemas mais graves do urbanismo e da arquitectura actuais é a unidade urbana. Essa harmonia de prédios, de volumes, alturas e espaços livres que constitui a arquitectura de uma cidade.

O problema é antigo e tão importante que em épocas passadas, na França por exemplo, ao se criar uma praça e nela construir um palácio, construía-se, ao mesmo tempo, as fachadas dos futuros prédios nela previstos.

Isso mostra como era importante o problema da unidade urbana, problema que com o correr dos tempos foi sendo esquecido e hoje completamente desprezado. Daí resultou essa confusão arquitectónica em que vivemos, desfigurando os conjuntos urbanos de todas as cidades modernas.

É evidente que, antes, a própria simplicidade construtiva, a repetição natural de velhos elementos da arquitectura, a regularidade de volumes, alturas etc., permitiam aquela unidade tão desejada, condições favoráveis hoje desaparecidas diante da imensa variedade de formas e materiais de que dispõe a arqui- tectura contemporânea. É claro que isso não serve de pretexto, nem impede que os responsáveis pelas nossas cidades sejam mais integrados no problema. Fácil Ihes seria, se estivessem realmente interessados no assunto, criar normas protectoras, definindo volumes, alturas, cores e materiais de acabamento, decisões canazes -como um denominador comum -de manter a unidade desejada.

Mas nada disso ocorre e a confusão existente é aceite e permitida sem discussão. Ao projectar seus edifícios o arquitecto esquece a relação que deveria existir éntre eles e o ambiente no qual serão inseridos e a ideia do show arquitectural prevalece e a unidade urbana, já tão ofendida, ainda mais se agrava.

Estas explicações não visam sugerir ao arquitecto uma limitação arquitectónica que o desacerto existente não pode exigir, mas apenas lembrar o problema. Um problema que desmerece nossas cidades e sobre o qual um dia poderão ser chamados a opinar.

Na arquitectura de Brasília esse problema nos preocupou. A ideia era dar inteira liberdade (respeitados afastamentos, volumes e alturas estabelecidos) aos prédios isolados, procurando manter a unidade arquitectural -como no sector bancário por exemplo -, recomendando a utilização dos mesmos aca- bamentos externos, cores, etc., dentro dos volumes pré-fixados.

No resto nenhuma regra impusemos, mesmo quando acontecia de a solução não nos agradar.

In Conversa de arquitecto, Oscar Niemeyer – 1993 – ISBN 972-610-036-4